05 de novembro de 2007
Meu caro amigo, esta é minha última noite. E pretendo gastar minhas últimas horas te escrevendo essas linhas.
“Por que eu?”, você deve estar se perguntando. Mas a resposta é bem simples: você silenciou minha besta interior quando mais precisei, impedindo-me de fazer outrora aquilo que hoje me arrependo de ter feito, sei que se estivesse ao meu lado na noite passada eu ainda teria motivos para viver centenas de anos. Quero que saiba de meu último destino, Willian. Agora sem mais delongas, vou descrever como conheci o céu antes de cair nos braços do Diabo.
Era mais um sábado como muitos outros, mais uma daquelas festas idiotas cheias de parasitas buscando seu lugar na coluna social. O cheiro de cigarro e bebida me doía as narinas todas as vezes que, para manter as aparências, precisava respirar. Stradivarious como sempre se divertia a encantar algumas mortais de alta classe, provavelmente filhas de algum político ou criminoso da cidade, não que eu encontre alguma diferença nesses vermes. Kurt cuidava de confundir com suas teorias absurdas alguns apostadores em uma mesa ao canto. Enquanto isso, eu conversava com Felipe, o anfitrião, que, por mais que tentasse disfarçar, deixava escapar que aquele momento nada mais era que uma forma de parecer importante diante da sociedade mortal e cainita de sua nova cidade.
Cansado das conversas sem sabor daquelas serpentes sem honra, resolvi fingir me interessar por aquela música sem vida que os jovens tanto veneram (gostaria de entender como ainda não estão surdos após ouvir ininterruptamente tantas batidas graves seguidas daquelas notas extremamente agudas).
Eram três e quinze e realmente precisava me livrar daquela companhia indesejável, foi quando, no caminho para o carro, fui presenteado por uma visão que nem “aquele acima” pode roubar de minha mente: ela estava defronte à estátua de um anjo de mármore. Sua mão direita acariciava a obra de modo que sua pele pálida se confundia com o branco do anjo. Seus cabelos castanhos esvoaçavam sob efeito de uma tênue brisa de verão. Seu vestido negro, tão ligado ao corpo, parecia parte dele, fazendo de suas curvas algo tão atraente quanto o vitae da primeira noite. Mas o que mais me chamou a atenção foram seus olhos. Há cento e cinquenta e três anos fui privado de ver a luz do sol e foram aqueles olhos que me trouxeram o sol de volta, de modo que quase podia sentir seu calor enquanto o sangue corria rápido em minhas veias.
O que preciso que entenda é que eu poderia usar de meus dons e trazê-la para mim em menos de um minuto. Poderia fazê-la acreditar que me amava e assim ela morreria afirmando isso como se fosse algo tão certo quanto a cor do sangue. Isso não bastaria, precisava conquistá-la. Ela precisava estar comigo por vontade, uma paixão verdadeira como nunca antes eu conseguira. E assim aconteceu, nos seis meses seguintes Beatriz e eu vivemos num paraíso em redoma de vidro onde só cabiam dois.
No entanto, o tempo passa e leva consigo os sonhos que sempre soubemos que não nos cabia sonhar. Em determinada noite, Beatriz chegou a meu apartamento pouco após o escurecer. Como não me encontrou em casa, já que a porta de meu aposento permanecia sempre bem lacrada, resolveu me esperar em minha biblioteca, largada em minha poltrona de veludo vermelho com bases douradas.
Acordei naquela noite ávido por vitae, já que na anterior tinha ficado todo o tempo ao lado de Beatriz, que se sentia doente, o que impossibilitou minha alimentação. Chegando a uma das salas, ouvi o som convidativo de tambores afinados seguidos de uma suave respiração, segui meus instintos e me vi em minha biblioteca frente a minha deusa, a dona de meus sonhos e senhora de meus pensamentos. Beijei seus lábios e toquei sua pele macia como se minha existência dependesse disso. Perdi meus dedos nas mechas de seus longos cabelos, deslizando minhas mãos às suas costas enquanto meus lábios desciam sobre seu queixo e encontravam o pulsar barulhento de suas veias.
Um gemido de êxtase em meu ouvido me trazia de volta à sala. Afastando o rosto, pude ver o pecado que acabara de cometer. Meu anjo de porcelana estava inerte em meus braços, seus lábios já não eram como rosas, tomavam agora um tom esbranquiçado e sem sabor. Seus olhos, que antes me traziam a luz de um verão distante, apagaram-se e agora eram como delicadas esferas de vidro castanho-esverdeado. O sangue fervia em minhas veias de modo que não conseguia me concentrar direito no que estava acontecendo, e, largando aquele corpo, pude ver em uma poltrona rubra a obra mais perfeita que meus malditos olhos um dia viram. Pude ver a mulher que tanto amei agora sem vida, perfeitamente largada sobre o móvel. Cada luz, cada cor, cada tom presente, contribuía para a beleza daquele momento.
Saí de casa apressado e passei a noite inteira vagando pelos becos fétidos dessa cidade imunda e agora aqui estou eu escrevendo essa carta me despedindo da desgraça que fui. Vou me encontrar com o sol em algumas horas, para, em um último momento, poder lembrar o sol dos olhos de Beatriz, aquela que amei, amo e, mesmo no inferno, sempre hei de amar.
Algustus Leony.
Algustus se entregou ao sol na manhã do dia 05/11/2007. Recebi essa carta um dia depois por meio de Rubi, uma de minhas carniçais, e estou repassando ela a você, pois para mim ela não possui nenhum valor. Alguém tão fraco ao ponto de se entregar ao sol não é exatamente alguém que eu posso chamar de amigo, por mais nobres que pareçam os motivos de sua fraqueza. Faça um bom proveito dela, Kurt.
Muitos receberam o dom, mas poucos nasceram para a eternidade. Sinceramente não estou bem certo de que o “amor” faça parte de nossa natureza. Alimentamo-nos deles todas as noites para continuar entre eles. Somos o topo da “cadeia alimentar” e eles ainda acreditam estar no poder, mas, quando menos esperamos, um deles acaba encantando um dos nossos.
Espero que aquele Toreador idiota tenha aproveitado bem seus últimos seis meses e que o inferno realmente exista para que ele possa se arrepender de sua estupidez.
Willian Halfdan (O sangue de gelo)
Por: Eduardo Vieira
Deu medo de você!
ResponderExcluirNão do conto, mas da tua capacidade de encarnar dois vampiros de uma só vez! Só sendo um louco ou mesmo um deles para descrever seus pensamentos com tamanha precisão!
Por via das duvidas, vou mastigar um pouco de alho e usar um crucifixo sempre que te ver a partir de hoje! ahuahuahah
^^
Uma estaca seria mais eficaz...
ResponderExcluiroO
ResponderExcluir#MedoModeOn
Já conhecia esse teu texto... e me lembro que quando li, fiquei viajando, criando as cenas na cabeça... muito bom!!! :)
ResponderExcluirRafa.
Eu adorei esse texto, sim você acertou quando disse que eu gostaria. Muito lindo. "lindo como há de ser". Adorei.
ResponderExcluir